terça-feira, 16 de abril de 2013

Arteletra Literatura

Uma entrevista que dei, junto com a Bia Grimaldi, para o Arteletra Literatura, da TV São Judas.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Olha, só... Em áudio, uma entrevista que o Oscar D'Ambrósio fez comigo para a Rádio Unesp, sobre meu livro.

http://podcast.unesp.br/perfil-16012013-tiago-savio-entrevista-1641

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Lançamento em Araraquara

E dia 12/01 às 20h, na Casa Lima (av. José Bonifácio, 1487, Araraquara/SP) tem o lançamento do livro em Araraquara!

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

O Primeiro capítulo: O Fim

     A menina, caída no asfalto em vermelho escuro e preto, é feia. Está viva, toda machucada, mas esse cabelo nunca deve ter visto um xampu decente. É uma mendiga, mesmo assim vou ajudá-la. 
     O homem, o que estava passando na calçada, pega-a nos braços, parece uma escultura envolta em tecido. Pede, seu olhar gritando como se ela fosse alguém importante, que os leve ao hospital. Ele estava só passando, não entendo como pode ter se afeiçoado a ela tão rápido.
     Entra no banco de trás, quase chorando, a boneca de pano no colo. Sangra pouco, talvez não manche o carro. Diz que se chama Gabriel, estava voltando do trabalho. Digo que me chamo Patrícia, vinda do cemitério.
     Não falo mais, não quero intimidades com essas pessoas, nem quero pensar no dia. A leitura do testamento de papai, aquele escritório com quadros baratos, a ráfia óbvia e empoeirada no canto, a escrivaninha tentando parecer antiga, o gordo suado em seu terno barato, lendo um papel.
     Uma história estúpida sobre um bebê e sua mãe biológica que morreu. Ela cozinhava no casarão em que sempre vivi, sua patroa nunca conseguiu engravidar.
     Meus pais nunca contaram nada, guardaram esse segredo de sua única filha. Por trinta e cinco verões na praia, trinta e cinco árvores de Natal, trinta e cinco festas, bolos, brigadeiros, enormes cenários, vazios. Mentiras em vermelho escuro e preto. A filha da cozinheira não sou eu, ela nem se chamava Patrícia. Meus pais, eles me amavam, nunca fariam isso comigo.
     Eles não eram meus pais, o advogado provou. Mostrou os documentos, assinados, carimbados, com selo oficial. Um caminhão, naquele momento, passou por cima de mim.
     E agora, como se meu sofrimento nunca fosse suficiente, um outro passou por cima desta garotinha na rua.
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fiquei um montão de tempo procurando a jenifer em tudo que foi canto nos bancos no mato nas árvores na calçada do outro lado de lá na caçamba de lixo nada de nada de nada daquela bunda suja dela aparecer... nem posso ir ali conseguir um cigarro que essa menina se escafede desse jeito some desaparece desse jeito depois vem falando que correram atrás que o cara lá que dorme no outro canto da praça fica querendo pegar nela... menina sem juízo fica provocando fica querendo mostrar tudo por aí mostrar tudo homem sempre quer pegar mesmo tem que ficar longe esconder colocar cobertor por cima casaco chapéu papelão saco plástico... agora vem essa moça da prefeitura toda cheia de cheiro toda chamando eu de dona débora dona débora dona débora fala que atropelaram a menina... acha... a minha jenifer é esperta acostumada a ficar no sinal vende bolacha bala chiclete brigadeiro chiclete bala vende o que for corre de malandro de polícia ela sabe fazer de tudo que fui eu que ensinei não ia dar bobeira no meio da rua não não ia mesmo não dava bobeira assim não... mentira isso mentira mentira tudo vocês querem tirar ela de mim querem ficar com ela alugar pra gringo fazer programa com ela que eu sei sei sim sei muito bem... a moça me leva pro hospital tem uma outra moça lá que viu a jenifer correr na frente do caminhão que tinha um cara correndo atrás dela... pergunta se preciso de alguma coisa fica fazendo que se importa com a gente... olha moça preciso sim preciso é de tudo nessa vida que não tenho nada nada de nada... se a senhora tiver dá umas moedas pra comprar uma coisa pra menina comer depois ela vai ter fome... 
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     Declaro o óbito. A garota faleceu em minha mesa cirúrgica. Seus pés aparecem sob o lençol, mortos, algumas mechas de cabelo pendem da mesa, amontoados de proteínas saindo de folículos pilosos que não recebem mais irrigação. Nenhuma de suas células tinha chances reais de sobrevivência, mas somos sempre obrigados a tentar. Tentei tanto com Irene, mas agora o divórcio, agora a distância, com certeza, é a melhor chance que temos de nossos órgãos continuarem funcionando.
     A menina deu entrada na noite de ontem, pouco nela ainda funcionava. Chegou nos braços de um rapaz de cavanhaque, acompanhado por uma mulher. Fora atropelada.
     Lacerações, hemorragias, traumatismos.
     Nosso casamento sofria convulsões, não éramos capazes de perceber. Depois de tudo o que houve no ano passado, a dor, a perda, foi muito difícil, mas decidi tentar novamente. Ela dizia que me amava, eu imaginava ainda ter algo parecido com amor correndo em meus vasos.
     Não havia salvação.
     A pulsação parou enquanto eu suturava o estômago. A menina perdera muito sangue, estava fraca. Tentei reanimá-la, mas o coração demorou a reagir, houve morte cerebral.
     Meu coração por vezes é também mais lento que meu cérebro: penso em dezenas de coisas enquanto sinto uma ou duas. Levei esse tempo todo para perceber que meus sentimentos por Irene não eram mais fortes o suficiente para continuarmos juntos. 
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     Veio correndo. A menina. Que nem galinha fugindo de raposa. Entrou na frente do caminhão. Não deu pra desviar.
     Levaram pro hospital. A menina. A cabeça queria fugir. Só que lembrou. Das minhas menina. Se fizessem com elas. Os polícia vieram. Contei tudo. Levantaram minha ficha. Trouxeram eu pra delegacia.
     Sempre vão tratar eu que nem bandido. Os porco filho dumas cadela do mato. Algemaram eu. Largaram eu numa sala fedendo mijo. Gritei. Queria água. Não aguentava de sede. Ninguém respondeu. Depois entraram. Dois polícia. A cabeça esquentou. Achou que iam encher eu de porrada. Daqui até a semana que vem. As mão já tava pronta pra bater também. Que não sou frouxo palhaço não. Falaram. Os polícia. Tinha testemunha. Não tive culpa. Soltaram eu.
     Fala. Um outro polícia. Morreu. A menina. Tá no hospital. Devia ir ver. A menina. É perto daqui. Vai demorar pra liberar o caminhão. Vou. 
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     Vou à cozinha, abro a geladeira, procuro algo, talvez o Gabriel, fecho. Confiro o celular, ele ainda não retornou nenhuma das ligações. Deve ter acabado a bateria, João, ele está bem. Não, ele carregou de manhã, não foi isso. Guardo alguns livros na prateleira, checo o celular, ligo a tv, desligo, olho o celular mais uma vez. Descansa um pouco, menino. Não consigo. Bebe alguma coisa pra relaxar. Um uísque. Não, pode ter acontecido alguma coisa, preciso esperar.
     Perdemos as contas já de quantas vezes você repetiu que não sabe o que pode ter ocorrido, João. O telefone finalmente toca. Aconteceu alguma coisa com ele? Está chorando. Só consigo entender que alguém morreu. Morte, terror, alguém da família, amigo, nós morremos? Sua tristeza é meu calvário, preciso protegê-lo. Quem morreu, conta com calma. Que menina é essa? Uma que ele acudiu na rua, não conhecia, a gente também não. Não fica assim, amor, eu vou aí.
     Chegando ao hospital, encontro o Sandro Rossi. Conta que atropelou a criança, foi um acidente, não foi sua culpa. Instintivamente penso em confortá-lo. João, o Gabriel está ali, chorando. Vai já até ele, menino. Corro abraçá-lo. O Sandro vai procurar a mãe da menina.
     Eu vejo quando ele chega perto. Ela tem uma faca na mão. Segura, grita, ela tem uma faca, vai matar, João, corre. Percebo antes dele o que ela pretende. Grito, mas minha voz também está em câmera lenta. Ela o acerta algumas vezes antes que Gabriel e eu consigamos segurá-la.
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achei que eles iam ajudar eu com o salafrário filho da puta puta da puta... esses veados desgraçados vieram foi segurar eu pra ele bater em mim nem depois dele matar minha filha alguém ajuda eu eles tem tudo o coração é na sola do pé que não quer saber de ajudar... larga larga larga eu larga foi ele que matou a minha jenifer tenho que acabar com o infeliz que é o que ele merece vou fazer o que ele fez com ela que já tirou tudo que eu tinha agora vem aqui... eles arrancam a faca da minha mão o outro ali no chão fica fingindo que machucou fingindo que tá sangrando que as tripas dele tão escorrendo pelo chão... segura ele não eu ele é que é o satanás veio levar eu também deixa terminar com ele larga larga devolve minha faca devolve minha filha pra mim que ela é minha preciso dela de volta comigo a faca devolve a filha... o outro moço mostrou ela ficou toda estropiada torta fodida... pedi pra levantar mas ela não mexeu mais ela não mexe morreu morreu não mexe morreu...
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     Encaminháva-me já para a saída quando fui chamado a voltar. Apareceu um caso de emergência, o próximo plantonista está atrasado. Preciso ser rápido, combinei com Irene de ela passar em casa pegar algumas de suas coisas: seus livros, a torradeira, ela não consegue acordar sem torradas, algumas roupas que usa menos, um de seus braços que encontrei no fundo do armário ou algo assim. Coitada, está tão abalada.
     O coração perfurado. Lacerações múltiplas no torso e cabeça, sangramentos, perda de funções. É um homem forte, pouco mais velho que eu, tem muitas cicatrizes pelo corpo. Uma das facadas foi próxima ao olho direito, pode estar comprometido. Minha prioridade é mantê-lo vivo, mas preciso tentar fazer com que continue a enxergar.
     O que não foi possível com Irene. Ela se recusava a ver o que ocorria. Fechava os olhos para tudo que infectava nosso relacionamento: o amargor que transformava cada palavra minha em uma lâmina direcionada a ela, a paranoia que tomara meus órgãos sensoriais, fazia com que percebesse qualquer de seus atos como mais uma traição, a tristeza que crescia sobre nossa cama e afastava cada vez mais nossos corpos. Passei a vigiá-la o tempo todo. Não encontrei mais nada, mas nosso relacionamento não tinha chance de sobreviver.
     O paciente, ao contrário, tem. Consegui costurar o pericárdio. Reconstruir a artéria rompida. Estancar as hemorragias. O olho vai ficar bom, nenhum órgão ficou comprometido. Perfeito, pode compensar a perda da garota em meu currículo. 
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     Entro no casarão quase desabando, preciso de tempo para reconstruir. Fui adotada, a mendiga morreu, apesar de tudo que fiz, preciso do James, meu marido. Ele espera, deitado na cama de meus pais, que nunca se deitaram ali, não eram aqueles os pais, não os meus. O quarto é tão antiquado, vou trocar os móveis, com certeza. Um quadro naquela parede, aquele Smithson que vi outro dia seria ótimo.
     Depois da leitura do testamento, à tarde, nem tinha mais como chorar, tão deprimida. Saí daqui, fui ao cemitério conversar com o túmulo dos dois, tentar entender o que era essa palhaçada que fizeram comigo, se faziam algum sentido as besteiras que diziam. Nunca disseram na verdade, o papai deixou escrito numa porcaria de papel, sem explicações ou desculpas. Como se bastasse fechar os olhos, dizer que não fazia diferença porque eles me amaram, fizeram tudo por mim. Não foi tudo, não mesmo, foi quase tudo menos uma coisa.
     Deito nos braços dele, conto o que anda em mim. James ouve, abraça, fala que o Martin, nosso bebê, dormiu, está tranquilo, bem. Nossa vida vai ficar bem de novo, logo.
     Quase acredito nas bobagens que ele diz. Vamos ao outro quarto. Martin acabou de acordar, como se nada tivesse virado o mundo do avesso. Pego-o no colo, fingindo ainda ser sua mãe. Deve ter fome, entrego-lhe o seio esquerdo. Sem dúvida estão um pouco caídos meus seios, mas logo termina essa droga de amamentação e vou poder fazer a cirurgia corretiva. Se não soubesse que poderia corrigir tudo depois, jamais teria engravidado.
     Não sei como viver com tantas questões em aberto, todos os dias agora serão de menina atropelada, por notícias, caminhões, seios caídos? Por que nunca contaram, eu era atropelada, morria no hospital, sem mãe, sem ninguém?
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     Os policiais nos pediram para acompanhá-los à delegacia. Gabriel está arrasado, precisando de mim. Abrace-o, dê colo, ele precisa de você. Não aqui, não consigo aqui, muita gente me conhece. Dói vê-lo triste assim, sei que posso e quero abraçá-lo, mas meus braços não são fortes o suficiente, apenas pouso a mão em seu ombro. Ele precisa de carinho, João.
     O policial nos chama. Conto que não vi de onde ela tirou a faca. Não prestei atenção se carregava uma bolsa em meio a toda aquela angústia e desespero. Conto que me pareceu familiar, mas não consegui lembrar como a conhecia, talvez da igreja, de alguma instituição, talvez da rua. Encontrava muita gente em meu antigo trabalho. Conto que conhecia o Sandro da adolescência, mas não o via há muito tempo.
     Finalmente eles nos liberam e voltamos para casa. Entramos e sentamos na sala. Gabriel deita a cabeça em meu colo, chora. Choro junto com ele. Talvez eu chore pelo quanto é feio que uma criança morra, talvez pela torpeza que é essa situação: alguém que nunca teve quase nada e ainda assim perdeu tudo. Nada disso, João. Você chora porque não pode conter a alegria de ter o Gabriel assim, tão frágil e belo e seu, sobre suas pernas. Chora por poder passar por isso, sentir ele, o alívio, a dor, a verdade, a vida de verdade, sua. Exatamente o que imaginamos que jamais teríamos.
     Junto as mãos no peito, agradeço a Deus por ter me deixado escolher esse caminho.
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     Cacete de um caralho da porra. Que merda aconteceu? O olho abre. Tô num quarto estranho. Tudo branco. Umas cortina meio boiola. Ela tá sentada do lado. A Sonia.
     Fala. A Sonia. Uma maluca esfaqueou eu. Fiquei feito bode estripado com faca cega. A cirurgia foi bem. Quase fui pro saco. Agora não tem mais perigo. Quando contaram pra ela. Pra Sonia. Deixou as menina. Com a mãe da Sonia. Pediu pra ele trazer ela. O irmão da Sonia. Elas mandaram beijo. As menina. Falou pra ela cuidar de eu. A menina mais nova. Ia ficar rezando. Pra sarar logo o dodói do pai.
     Pelo menos alguma coisa ainda presta. As menina. A Sonia.
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     Volto para casa. Irene está em seu carro, parada em frente à porta de entrada. Aproximo-me, está chorando. Peço desculpas pelo atraso. Ela me fita com olhos intumescidos de ódio, diz que está acostumada com minha falta de consideração para com ela, veneno sai de seus lábios, sobe em meu peito, machuca ainda um pouco. Não entendo a razão de toda essa raiva a mim dirigida nos últimos tempos. Ela não aceita argumentos, racionalidade ou ofertas de paz.
     Sussurra de forma quase ininteligível que precisa ir. Peço que espere um minuto, vou pegar as caixas que estão separadas. Ela sai antes que eu tenha voltado. Não sei o que fazer.
     Acho que só posso esperar. O tempo vai adiante, quem sabe as pessoas também, até Irene pode ir. Acho que só precisa se acostumar com um pouco de solidão em seu corpo: no joelho direito, nas ilhotas de Langerhan, talvez em uma das orelhas, ou mesmo em seu coração. Precisa se acostumar com a ausência de quem éramos juntos.
     E com o fim.